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Pe. JOÃO BOSCO

Com o martírio renasce a esperança do povo
(Padre João Bosco Penido Burnier, SJ)


Vidas pela VIDA, vidas pelo Reino.
Todas as nossas vidas, como as suas vidas.
Como a vida d’Ele, o mártir Jesus.

A Companhia de Jesus, a Prelazia de São Félix e a Diocese de Diamantino cultivam grande admiração pela pessoa deste mártir conhecido pelos Bakairi como Saponaghi, Padre Bom e Sorridente. A sua memória é revivida com intensidade através das romarias ao Santuário dos Mártires da Caminhada em Ribeirão Cascalheira e outra a Diamantino, onde está sepultado. João Bosco Burnier veio em 1966 ao Mato Grosso, Prelazia de Diamantino, para trabalhar até a morte com os trabalhadores rurais e os índios. Inicialmente foi enviado para o trabalho com os Bakairi, na Missão Anchieta. Morreu como Jesus Cristo, oferecendo sua vida por nossa libertação.


  Padre João Bosco Burnier celebrando a Missa de Nossa Senhora Aparecida na Comunidade São Benedito em Diamantino.


João Bosco Burnier nasceu em Juiz de Fora no dia onze de junho de 1917 e no dia sete de abril de 1928 deixou os pais Henrique e Maria Cândida Penido Burnier e os sete irmãos para ser padre na diocese do Rio de Janeiro. Quando estudava em Roma decidiu ser jesuíta. Entrou na Companhia de Jesus em 1936, sendo ordenado sacerdote em Roma, no dia 27 de julho de 1946. Em 1948, tornou-se secretário do Padre Geral da Companhia de Jesus para a Assistência da América Latina. Depois da bomba de Irochima e Nagazaki pediu para ser missionário no Japão. No entanto, foi enviado para ser Superior da Residência de Anchieta, no Espírito Santo, e Provincial da Vice-Província Goiano-Mineira entre 1954 e 1958. Exerceu importantes serviços na Educação: foi Mestre de Noviços e Diretor espiritual dos juniores entre 1959 e 1965. 

Para evocar a figura de Burnier, voltemos aos anos sessenta, com o início da ditadura militar no Brasil cuja ideologia desenvolvimentista consistia em integrar para não entregar. Os Xavante, habitantes tradicionais da região em questão, desde os anos 40 vinham sendo perseguidos e eram temidos porque reagiam à invasão do seu território pelas frentes de expansão coloniais. As Companhias colonizadoras recebiam as terras do Governo para vendê-las. Com as guerras e as doenças foram sendo vencidos aos poucos, resolveram associar-se à Missão dos salesianos para sobreviverem. Para atender às frentes colonizadoras foi aberta a estrada de Barra do Garças para São Félix do Araguaia. 

A produção de arroz deu muito lucro para os produtores rurais, na época inicial da colonização da região. Para o vale do Araguaia foram atraídos também muitos pobres sem emprego, pessoas que tinham perdido seu pedaço de terra para grandes especuladores. Muitos sem-terra passam a ocupar a região como posseiros.

O tempo de graça das mudanças na maneira de trabalhar com os povos indígenas estava fervilhando quando Burnier chegou à Missão jesuítica, com sede em Diamantino. O clima de igreja perseguida na América Latina e as reuniões quentes que eram feitas entre os missionários, o fizeram mudar seu modo de pensar a Missão. Teve que aprender a participar das discussões como um igual e a reconhecer seus erros para deixar-se desafiar. Nas reuniões tensas, ou situações sem solução imediata, dizia: “leve... na esportiva!”

Um destacamento de polícia foi estabelecido em Ribeirão Bonito, junto de Ribeirão Cascalheira, em 1973, para pressionar, intimidar os agricultores pobres que entravam em choque com os grandes fazendeiros na luta para adquirir um pedaço de terra. Os pequenos produtores rurais dali escreveram ao presidente do Brasil, Ernesto Gaizel, protestando que a polícia só estava a serviço dos fazendeiros, maltratava e torturava os pequenos agricultores e os peões. À época, a Igreja de São Félix do Araguaia tinha voz profética com Dom Pedro Casaldáliga, que alcançava grande representatividade na defesa dos Direitos Humanos.

No início dos anos 70, a Igreja criou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para articular os trabalhos com os indígenas. 

Através da coordenação do regional do CIMI-MT, João Bosco Burnier foi à Prelazia de São Félix participar de um encontro de pastoral indigenista em Santa Terezinha. Visitou a aldeia Tapirapé, plantou uma mangueira em S. Felix e voltou com Dom Pedro Casaldáliga até Ribeirão Bonito (hoje Ribeirão Cascalheira) para participar e celebrar a festa de Nossa Senhora Aparecida. 

Porém, o tempo não estava para festa. Um clima de terror pairava no local. Num confronto com a polícia militar os “posseiros” haviam reagido à onda de terrorismo e mataram o cabo Felix, conhecido na região por suas “arbitrariedade e até crimes”. Os policiais atribuíam a Jovino Barbosa e seus filhos a morte do cabo Félix. Como os suspeitos estavam foragidos, para localizá-los, os policiais carregaram para a delegacia a mulher de Jovino chamada Margarida e sua nora Santana e as torturavam barbaramente de várias maneiras com tapas, pitoco de cigarro e agulhas. Vários policiais violaram Santana, queimaram sua roça, sua casa e todo o arroz do depósito.

O Padre João rezou e cantou com o povo na procissão de Nossa Senhora Aparecida para a bênção da água do batismo. Ouvia-se da delegacia muitos gritos e súplicas: “Não me batam”. Depois da procissão Dom Pedro e o Padre Burnier foram à delegacia interceder por ambas: “impotentes e sob torturas – um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, abaixo das unhas – uma repressão desumana” (Dom Pedro Casaldáliga). Pediram que soltassem as mulheres inocentes, mas os soldados os insultaram e disseram que lugar de padre é na sacristia. Sem resultados, o Padre Burnier disse que estava indo para Cuiabá e denunciaria os abusos. Ao ouvir isso o policial Ezy Ramalho Feitosa se adiantou e deu-lhe uma bofetada, um golpe com a coronha no rosto e o tiro fatal. 

Eu me apresentei como Bispo de São Félix, dando a mão aos policiais. O Padre. João Bosco também se apresentou. E tiveram aquele diálogo, de talvez três ou cinco minutos. Sereno, de nossa parte; com insultos e ameaças, até de morte, da parte deles. Quando o Padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezi Ramalho Feitosa pulou até ele dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inutilmente tentei cortar aí o impossível diálogo: João Bosco, vamos... Em seguida descarregou também no rosto do Padre um golpe de revólver e, num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio” (Dom Pedro Casaldáliga).

O Padre caiu mortalmente ferido, vítima da caridade, sem reagir diante de tamanha violência. Dom Pedro lhe deu a Unção dos Enfermos, enquanto o Padre Burnier rezava, invocando várias vezes o nome de Jesus. Viu que sua hora havia chegado, ainda consciente, disse a Dom Pedro: “ofereço a minha vida pelos índios e este povo sertanejo”. Recordou de Nossa Senhora Aparecida e pronunciou suas últimas palavras: “Dom Pedro, terminamos a nossa tarefa!”

Não houve processo criminal contra o assassino, não foi preso nem julgado, porque se tratava de uma vítima do sistema de violência institucionalizada pela própria instituição militar na ditadura de Estado, o que gerava a pretensão de domínio absoluto sobre as pessoas e a subserviência da população. Todo o povo ficou com o coração pasmo. Os homens do lugar tomaram coragem e foram ver o padre no ambulatório, mas as mulheres ficaram rezando na igreja e em casa. Diziam: Se fosse um de nós... não seria estranho, acontece todos os dias. Porém um padre! Estes policiais perderam o sentido!

Sem recursos para atender o Padre agonizante no local, Dom Pedro chamou por socorro e as lideranças da Igreja local foram atrás de um táxi aéreo. Para Dom Pedro Casaldáliga, aquela foi uma via-sacra de Redenção pelos caminhos da Amazônia, pelas terras dos índios, dos trabalhadores rurais, dos empregados das fazendas. Chegaram em Goiânia, porém o Padre Burnier se encontrava em agonia de morte. 

No terceiro dia, a celebração foi iniciada com este comentário: “que o sangue derramado pelo Padre João Bosco nos comprometa na caminhada”. Nosso mártir nos deixou no dia 12 de outubro de 1976 para estar junto do Pai. Foi enterrado como semente no dia 15, em Diamantino. Dom Pedro observou: Deus pôs um sinal no céu: o arco-íris, sinal da glória desta hora. No terceiro dia, na Missa em Ribeirão Bonito, foi feito o comentário: que o sangue derramado pelo Padre João Bosco Burnier nos comprometa no caminho. 

“Uma lápide erigida pela comunidade Nossa Senhora Aparecida expressa a fé do povo: Irmãos, aqui em nosso lugar, a paixão e morte de Cristo se fez presente e se renovou no Padre João... Como também aconteceu com Jesus Cristo, o Padre João morreu porque defendia a verdade, a justiça, a liberdade. Era um espinho nos pés dos poderosos e opressores. Por isso usaram da força para fazê-lo calar: o assassinaram. Porém a morte não é o fim. A morte é um passo para a vida. E esta morte nos faz recordar...”

Ao sétimo dia, em romaria com velas acesas, foi levada uma grande cruz ao lugar do assassinato e ali foi levantada, com a participação de toda população. Uma placa de madeira, onde estava escrito com ferro incandescente o acontecido: No dia 11 de outubro de 1976, neste lugar de Ribeirão Bonito, MT, foi assassinado o Padre JOÃO BOSCO PENIDO BURNIER, por defender a Liberdade do Povo

Naquele dia, um dos participantes afirmou: Essa prisão da delegacia só serviu para deter e humilhar os pobres, peões e pequenos produtores rurais. Nunca se viu um rico nela. Outro acrescentou: A cruz representa a nossa libertação; essa cadeia representa a perseguição, a tortura, o assassinato e tudo o que nos aterroriza.

As pessoas estavam indignadas com o que aconteceu e foram se juntando. Essa união levou à realização de um gesto profético: Arrancaram as portas e grades da cadeia, para que ninguém mais ficasse preso e judiado injustamente. O povo todo participou... Quem não podia participar diretamente, batia palmas e davam gritos de encorajamento. O povo resolveu abrir as portas da prisão... e colocaram abaixo a delegacia de polícia. A enfermeira que atendeu o Padre João testemunhou: Com o martírio do Padre Burnier para libertar as duas mulheres presas, libertou o povo da prisão do medo. O povo que tinha medo de sair de casa, saiu às ruas e, numa ação coletiva, destruiu a cadeia.

Quiseram construir uma igreja no lugar da prisão, porém a Polícia Federal ficou de plantão para amedrontar e impedir que se construísse a igreja no lugar da prisão. Arrancaram a placa de madeira que rememorava o acontecido junto à cruz. O povo colocou outra de ferro. Porém, a polícia acabou por arrancar também a cruz. A memória do povo era demasiada subversiva para um Estado autoritário em mãos dos militares. Infelizmente este não foi um caso isolado com os militares no Governo do Brasil. A causa verdadeira dessa violência tem raízes num sistema de falta de respeito à pessoa humana. Ali surge a tortura e a opressão dos pobres: dos povos indígenas, dos pequenos agricultores e trabalhadores do campo e da cidade e de quantos se solidarizam com eles. Este martírio tem sido cimento na construção de um mundo novo na justiça e na caridade.

João Bosco Burnier tinha uma disposição interior de atender a todas as pessoas. Seu esforço de pesquisa em teologia e filosofia na formação básica continuava agora nas áreas de história, lingüística e antropologia, isso para melhor responder à Missão com os povos indígenas. Era um homem de princípios e não ficava em cima do muro, discernia e decidia com firmeza. Burnier era um homem reservado nas experiências pessoais, mas humilde e pobre. Tomava as conduções mais baratas, sabia esperar carona na estrada e descansar ao relento. Às vezes engatava uma viagem na outra para dar conta dos trabalhos e fazia parte da coordenação do Regional do CIMI Mato Grosso quando foi martirizado.

Em 2001 o lema da Romaria dos Mártires da Caminhada foi “Vidas pelo Reino”. Saponaghi queria entrar em comunhão com os Bakairi, esforçou-se para aprender sua língua, os acompanhava na roça, nos banhos de rios, nas celebrações e nas festas. Recordam com carinho deste missionário, especialmente nas aldeias Pakuera e Sant’Ana, pois sua chegada era motivo de alegria e esperança para todos.
Foto retirada do livro do Padre Maia a respeito do Padre João Bosco Burnier, da Editora Loyola.



A luta do Padre João Bosco Burnier e de tantos outros como o Irmão Vicente Cañas, a Irmã Doroti Stang, Chico Mendes, Simão Bororo, Padre Rodolfo Lunkenbein, Henrique Trindade, o Padre Ezequiel Ramin, continua no martírio dos irmãos e irmãs que até hoje lutam pelo direito à terra e à sobrevivência dos povos indígenas. Dom Pedro Casaldáliga concluiu: "Que o sangue dos mártires nunca mais deixem vocês em Paz!" Por isso Luiz Augusto Passos canta:

Ribeirão Bonito, cruz do Padre João,
Alta Cascalheira, gente do sertão:
O suor e o sangue fecundando o chão.
Mãe Aparecida, o profeta João,
Terra da Esperança, povo em mutirão,
Igreja dos Pobres em Libertação!

1 – Os índios pais banhavam sua vida nas águas livres deste ribeirão. Filhos da Liberdade já perdida, a injustiça nos banha em poeirão.
2 – Sempre tocados, retirantes fomos, mas chega o dia de firmar o pé. Ninguém é mais do que também nós somos, filhos de Deus, iguais à luz da Fé.
3 – Da União fazemos nossa força, da Liberdade o nosso novo ar. A terra que e de Deus e também nossa. Quem sabe ser irmão, pode ficar.
4 – Festejando a Páscoa em cada Eucaristia, sentindo o Cristo vivo em cada irmão. A Igreja se constrói no dia-a-dia de um povo que labuta em mutirão.

Pe. Aloir Pacini, SJ (antropólogo)
Fonte: http://www.centroburnier.com.br/textos/diversos/biografia_joao_bosco_burnier.html

3 comentários:

  1. Que triste conhecer a história deste padre! Mas mais triste ainda é saber que absurdos desses tiranos e impunes, despreparados policiais, ainda acontecem no meio de nós. Que haja justiça!

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  2. QUE LINDA E TRISTE HISTÓRIA . Vim pesquisar porque minha neta vai se batizar em uma igreja de Dom Bosco

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  3. .Triste história,pois nesse mundo ,todos que lutam pela justiça acabam morrendo por ela,e a justiça na verdade nesse país não existe,até o poder politico compra a justiça ,para a tornarem injusta ,pois assim fazem de um país sem esperança e sem direito de justiça.

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